A Rotina amorosa de Solange (crônica da violência cotidiana II)

Dirceu é um empresário de médio porte em estado de graça. Os negócios vão bem, e seguidamente tem imaginado como estariam orgulhosos os pais que mal conheceu, perdidos na infância. A fantasia ressurge a cada conquista ao longo dos quase setenta anos, moldando seu comportamento espalhafatoso e brigão, com prazer em provocar discussões ásperas, embora bonachão na maior parte do tempo.Pontuou a nova fase separando-se da mulher com quem casou na juventude para viver com outra cerca de vinte anos mais nova.
Solange é massoterapeuta, faz o tipo discreta, carrega um sorriso cordial, é bem informada e vaidosa. Convenceu Dirceu a se exercitar e, juntos, frequentam diariamente uma academia de musculação.
Ambos disciplinados,têm rotina bem definida. Todos os sábados fazem sexo. Aos domingos, brigam. Ele a xinga e a espanca. Ela já o expulsou, se arrependendo antes de apontar a porta de casa. Ameaçou sair, desistindo antes de fazer a mala. Solange se considera forte e segura o bastante para não recorrer à Lei Maria da Penha.
Ao exibir naquele fim de noite o vestido novo, cujo decote o marido considerava indecente, tomou uma cusparada no rosto.
- Isso é coisa de puta!
- Seu grosso, mal-educado, estúpido!
Recebeu outra cusparada.
- Seu filho da puta, olha o que você fez!
Virou as costas, com intenção de se limpar no banheiro, quando quase tombou ao golpe de punho fechado no ombro. Revidou com gritos, desfiando as ameaças habituais. Dirceu justificou o ato como sempre fazia:
- Você que provocou!
Insultos de parte a parte se seguiram por mais de dez minutos, até que, ao ouvir mais uma vez a mulher dizer que o odiava e partiria, disparou:
- Não vai embora, eu te amo!
- Como me ama, se cospe na cara e me bate? Seu monstro!
- É que você me provoca, sabe que sou assim, mas eu te amo!
Ela o encarou de frente, olhou nos olhos por menos de um segundo e seguiu para a cozinha em passos duros. Tomou vagarosamente um copo d’água e voltou para o quarto. Já o encontrou deitado. Também se ajeitou na cama, virada de costas para Dirceu, cuidando de evitar o toque entre os corpos. Fechou os olhos e desejou dormir logo, porque segunda-feira é o dia mais movimentado no trabalho. Um tom denso e muito escuro entre o verde e o vermelho encorpou no cérebro o repetitivo e insistente “eu te amo”. Suspirou fundo, resignada e dolorida.A frase também faz parte da rotina.Solange a ouve sempre.Sempre aos domingos.

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