Pai, tal filho e talvez um espírito santo (crônica da violência cotidiana I)

O jovem e exímio lutador de jiu-jitsu foi abordado por um ladrão quando entrava no carro estacionado na rua. Atendeu a ordem de entregar a chave do automóvel apesar de não perceber qualquer tipo de arma. Seguia à risca a orientação vigorosa do pai aos três filhos:

- Se vocês forem assaltados, reagirem e sobreviverem, nunca mais vou dar outro carro! Deixa levar!

Assim fez o filho de Oscar Godói. Assim fez o pai sem titubear quando viveu o mesmo trauma. O ex-árbitro e comentarista afirmou que não tentou reagir ao assalto, só investiu contra seu agressor após receber o primeiro tiro por temer tratar-se de uma execução. Ao descer do carro exatamente em frente ao portão do prédio onde encontraria o amigo, Godói trancou a porta do Honda Civic, enfiou a chave no bolso traseiro direito, abaixou a cabeça e encobriu parcialmente a visão com a palma da mão, protegendo os óculos da chuva fina que caía naquela noite. Não percebeu ninguém por perto até dar um encontrão no homem que tentou lhe matar.

- A chave!

- Que chave, meu!

- A chave do carro! É um assalto! Passa a chave!

O jovem, supostamente entre os 25 e 30 anos de idade, já apontava a arma em sua direção.Godói levantou as duas mãos à altura da cabeça, segundo ele ainda assustado, correu os olhos pelos cabelos curtos amarelados como os de um surfista, descendo pelo rosto chupado de magreza e bochechas cravejadas de cicatrizes aparentemente de acne. Se fixou na boca, como se esperasse mais alguma palavra, mas torceu o lado direito da cintura em direção ao assaltante e, - ele não se lembra do gesto - talvez tenha abaixado o braço direito e disse:

- A chave está no bolso de trás.Tomou o primeiro disparo, que lhe atingiu de raspão o lado direito da barriga. Por segundos passou por sua cabeça a idéia de que seria executado, que sua única chance de seguir vivo era reagir e que o inimigo era franzino. Agarrou o braço que empunhava o revólver e pensou em aplicar uma gravata. Girando o pulso o assaltante voltou a mirar a vítima e atirou mais uma vez. A bala rasgou a epiderme do lado externo do joelho do comentarista. Ainda atracado, conseguiu levantar o antebraço e alvejar o peito. O projétil atravessou duas costelas, perfurou o pulmão e lhe vazou as costas. Godói caiu para trás, levando a mão à ferida com todo o lado esquerdo do tronco dormente. Livre, antes de fugir o oponente ainda mandou outra bala ao lado esquerdo do pescoço que, por obra do que um crédulo diria ser de um espírito santo, passou a dois centímetros da jugular e a outros dois centímetros da coluna. Godói só perdeu os sentidos quando foi sedado pelos enfermeiros, já dentro da ambulância.

Com o bíceps direito ainda arroxeado e a sensação de que carrega um plástico bolha no peito, volta para casa com um desejo antigo: comprar uma Mercedes conversível de dois lugares para passear com a mulher. Acredita que fará isso logo que puder também arcar com o valor alto do seguro que o modelo exige, como garante ter feito sempre com todos os outros carros da família. Para não ter que reagir desesperadamente ante um criminoso.

Nota: As seguradoras tratam a região onde ocorreu o crime como de alto risco para proprietários de veículos. Um bandido iniciante, nervoso, começaria por ali o ofício. O que pede mais da segurança pública do que a orientação de não reagir.


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