A Europa tem por hábito dormir mais cedo que a América. Especialmente ao norte, anglos e saxões. Às vinte e uma, vinte e duas horas já não havia muita gente nas ruas de Frankfurt, apesar do verão. Restaurantes, lanchonetes e bares, quase todos, fechados.
Restavam alguns pontos, mais animados por turistas estrangeiros que acompanhavam a Copa do Mundo de 2006. Em um deles, uma praça com bares e uma danceteria, vimos de longe um lugar onde parecia ainda servir uma refeição decente depois de um dia puxado de trabalho, esticado devido ao fuso horário, quatro menos no Brasil.
Eu, o cinegrafista e a produtora titubeamos em parar ali o carro. Havia dezenas de homens esparramados pelas sarjetas, desacordados, junto a montes de garrafas long neck de cerveja. Paramos ali, acho, mais por curiosidade profissional.
Eram ingleses, chegados poucas horas antes em voos de duração doméstica, se “aquecendo” para o jogo do dia seguinte na cidade.
Os hooligans causaram o primeiro trabalho conjunto das polícias inglesa e alemã, que não se falavam desde a segunda guerra mundial. Só os “Bobs” tinham know-how para lidar com eles. Muitos integrantes das gangs já haviam sido deportados do aeroporto.
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Policiais ingleses e alemães em Frankfurt |
Boa parte dos outros, segundo a imprensa local, dezenas, destruiu quartos de hotéis, quebrou vitrines, ameaçou e bateu em transeuntes.
Carecas, corpulentos, camisas justas e jeans apertados, apagados nas sarjetas.Concluímos que o dia seguinte seria “punk”.
E foi exatamente com punks, anarquistas e estudantes alemães que topamos logo na manhazinha do dia seguinte na Praça Roma, ponto de encontro de torcedores de muitas das seleções que disputaram os jogos. Faziam protestos em prol de melhorias na educação. Vinham em marcha por uma das quatro ou cinco ruas que convergiam para praça. Gritando palavras de ordem, chamaram a atenção dos turistas. Começamos a gravar.
Por outra viela lateral, desceram em marcha soldados fardados de verde e coturnos pretos. Os policiais dos dois países se movimentaram ensaiados no centro da praça. Já tinham a informação de que os hooligans se aproximavam.
O pelotão formou uma coluna de quatro em linha, isolando e empurrando os punks por uma das ruas para fora da praça, enquanto os hooligans entravam gritando mais forte refrões que evocavam a vitória dos aliados na grande guerra. Partiam em direção dos soldados e dos manifestantes.
O cinegrafista foi atropelado pela blitz, só não pisoteado porque consegui erguê-lo pela gola da camisa com uma das mãos, enquanto com a outra pegava a câmera no ar.
Os turistas se apavoraram, um tumulto só não aconteceu por ação dos policiais.
Hooligans e estudantes, separados pela coluna, avançaram lado a lado pela larga avenida que margeava o rio Main.
Seguidos de perto por nós, os britânicos avançaram sobre a coluna.
Bombas de gás, gritos, cassetetes, pastores alemães explodiram por todos os lados.
Desordenados, os vândalos socavam o que viam pela frente enquanto escapavam dos cães e das viaturas de sirenes ligadas que surgiam das transversais.
Corremos no início para o meio do confronto. Depois, para longe dos cães, que por pouco não abocanharam a produtora.
Enquanto ela se recuperava de um pequeno desmaio, percebi que seguir de tão perto era risco demais. Já tínhamos material suficiente para enviar aos jornais pelo carro de transmissão postado a menos de dois quilômetros dali. Deise decidiu ficar ali, junto aos militares.
Buscamos cortar caminho por uma ruazinha, correndo, encharcados de adrenalina, excitados por termos testemunhado o primeiro grande embate entre alemães e ingleses em território depois de mais de 60 anos.
Topamos com um deles, de mais de um metro e noventa, bêbado, sem camisa, caneca de cerveja na mão, que, ao ver a câmera e o microfone, encarou a lente e urrou.
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Da ponte sobre o rio Main, contando a história ao vivo |
O cinegrafista ligou o botão, me defendi aproximando dele o microfone à boca. Ele gritou:
- I’m a hooligan!
Ficamos parados. Voltando o rosto para mim, repetiu o grito:
- I’m a hooligan!
Acho que eu estava dopado de tensão. Olhei nos olhos dele, puxei o microfone para minha boca e retruquei no mesmo volume:
- So what?
Esperei a resposta, mas ele se calou surpreendido.
- Vam’bora, Rodolfo, senão não vai dar tempo de por ar.
Cerca de quinze minutos depois, entrei ao vivo no programa Debate Bola, à beira do Main, narrando sobre as imagens feitas, enquanto as sirenes continuavam soando ao fundo, agora distantes, levando hooligans à prisão.
1 Comentários
Foi realmente incrível !
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