O primeiro lado do rio

Crônica

 O rio ajudara o tempo a amansar o povoado. Esconderijo de pistoleiros e jagunços procurados por assassinatos, não queria ser encontrado. 
 Alcançá-lo exigia cortar matas densas entre vales e chapadas ocupadas por índios com fama de hostis e canibais. Largo, profundo, naquele ponto o rio corria mais doce, lento e liso. O porto ali avançou como rua principal da cidadezinha criada.

 Do lugarejo, na maior parte do ano só três grandes pedras eram vistas acima da linha d’água.  Entre elas passava a balsa até a estação de trem que leva minério e gente de Minas e traz da capital do Espírito Santo. Para lá foi Maria ainda moça, despedindo-se dos pais e do filho pequeno devagar como a travessia.

 Ela não sabia definir o que era o mais da vida que procurava. A beleza ajudou-a a engrenar logo como garçonete em Vitória. Boa no ofício, passou muitos anos em bares e restaurantes, onde aprendeu ainda coisas de cozinha e da administração do ramo.

 Fizera poupança remediável quando percebeu ter chegado até onde podia com sua instrução.  Também sentiu enfim vontade de ser mãe daquele já adolescente, e de dar descanso aos pais do trabalho na birosca que possuíam colada ao porto no primeiro lado do rio.   

 A venda era antes um cômodo de madeira, quase na entrada do lote com a moradia ao fundo. A casa é ladeada pelo galinheiro feito atrás da horta junto à cerca de arame farpado. No limite do lado oposto do terreno ficam os banheiros que serviam ao bar. Entre a habitação e a venda, na terra amarelada muito varrida e meio arenosa, pés de amora, carambola, acerola e manga dão certa privacidade à família.  

 O barraco da frente incomodava Maria. Era estreito, cabiam apertadas a pia com pequena bancada, o fogão e o freezer horizontal amarelo com o nome de uma marca de cerveja. O balcão de ponta a ponta formava a parede quando os dois janelões sobre ele se fechavam. Na área em frente, quem bebericava ou esperava a balsa fugia do sol e do ar modorrento debaixo da mangueira de copa alta e aberta, cujo tronco só um não consegue abraçar, circundada por um aro de cimento usado como assento.

 O juntado de tábuas deu lugar a um quiosque como vira à beira-mar, maior, coberto de trançado arredondado de palha de coco. Pôs sob a mangueira mesas e cadeiras de plástico branco. Fez ver a beleza do rio e da outra margem, de mata volumosa e muito verde ornando a estação. Acrescentou ao cardápio da mãe pedaços de frango frito, peixes frescos crocantes e, às vezes, a lagosta do Rio Doce, uma raridade.

 Servia café com biscoitos e bolos caseiros aos passantes da manhã, depois almoço aos fregueses que cativara. À tarde, ela atendia com bebidas e passava tempo conversando com o filho, adulando o casal de cachorros e dando de comer e beber ao sabiá da mangueira, ao qual também dava nome e prosa.

 Rente ao mato da margem, cimentou um quadrado, com muro de meio metro de altura rebocado a cal. Ergueu pelos cantos hastes de ferro e apoiou sobre eles folhas de zinco, de onde pendiam duas lâmpadas fracas de filamentos. Rodeou a estrutura com pisca-piscas chineses coloridos que o rio não dava conta de refletir.

 A vizinhança achou lugar para o forró que não fossem as festas ocasionais no clube e os finais de semana na zona. Germinaram violeiros, sanfoneiros e roqueiros. Deixou à disposição banquinho e microfone. Maria conheceu gente nova da cidade e de fora.  Empregou o filho, comprou creme de cabelo e de pele, roupa nova.

 Estava mais bonita e satisfeita quando entristeceu. De repente, pouco depois que uma lufada do rio despejou cheiro de podre.  Ela não vê mais como nem por que atravessar o rio, tampouco outro lado para voltar.