Se aquele domingo fosse sábado como neste ano, quem sabe teríamos Ayrton Senna por mais que um dia.
A perfeição é, se lhe parece.
Objetivo é o espanto causado. O pasmado quando vê no homem
comum a perfeição que crê lhe ter sido negada por seu deus cria o escolhido. O
eleito, em vez de titubear na bifurcação entre a inveja e a admiração,
simplesmente trafega na reta de que deus é ele.
No manejo deste narcisismo o herói se distancia do
homem. Senna ultrapassou com arrojo a
história para cruzar a lenda.
Sozinho, antevia e manipulava toda a corrida, em detalhes,
cochilando no cockpit antes da largada. Declarou certa vez de que sentia às
vezes como se ele e o carro fossem um corpo só. A manobra segura na pista
molhada provavelmente era o que insuflava sua onipotência.
Se permitia tudo para ser só ele até a bandeirada, quando
então se juntava aos Silvas, aos corintianos e aos brasileiros. Equilíbrio
raro, perfeito.
Não se permitia menos que perfeito. No intervalo do
calendário de 1991, antes do GP do México, se acidentou brincando com jet-ski
em Angra dos Reis. O corte teria custado 10 pontos na cabeça. Embarcando de São
Paulo para a prova, a imprensa o encurralou no aeroporto de Congonhas à beira
da pista, próximo do hangar de onde já saía o jatinho próprio.
Com simplicidade única a portadores de grande autoconfiança,
submeteu-se a uma coletiva improvisada por dezenas de jornalistas com o boné do
patrocinador propositadamente enterrado até quase as sobrancelhas. Respondeu
calmamente às perguntas incômodas sobre o “mau comportamento”, negando-se
apenas a mostrar o curativo branco que arranhava sua imagem.
Ao final, um fotógrafo com um safanão na aba arrancou-lhe o
boné a fim de documentar a falibilidade do piloto. Com agilidade instintiva,
recuperou o boné no ar rindo e correu em direção ao avião, como que divertido
por não se ter deixado pegar de surpresa.
Subiu a escadinha da aeronave repondo o boné, virou-se do
alto e acenou com aquele sorriso de zombar amigo, sem um só pingo de
contragosto, como qualquer um nós, comuns.
Coisa de mito.
Texto de Lívio Lamarca, publicado pelo blog em 1/5/2014
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