O futuro, danação (crônica da violência cotidiana III)

Dia movimentado no aeroporto de Cumbica. Os bares e restaurantes do local estavam cheios. Em um restaurante amplo, Adriano, sentado sobre sua caixa de engraxate, lustrava os sapatos de um homem. Na mesa ao lado, uma mulher, sozinha, se distraia com uma refeição, quando percebeu que sua bolsa havia sido furtada. Comunicou a um segurança, lançando suspeita sobre o pardo de dezoito anos.

Segundo Adriano, só assinou a ocorrência na delegacia após tomar “uns tapas no peito” e uma descarga de choques. Lambuzou os dedos de tinta, carimbou várias folhas de papel enquanto replanejava seu futuro:

- Pronto, não arrumo mais emprego. Agora é que vou virar bandido mesmo...

Levado a uma delegacia de Guarulhos, foi colocado junto a detentos de todo tipo, onde conheceu um dos líderes da cadeia.

- Que que se fez, moleque?

Acreditando que seria melhor se passar por bandido, relatou uma fantástica perseguição pelos corredores do aeroporto ao ser flagrado “batendo uma bolsa” de uma madame.

- Ce é louco,mano! Com aquelas câmeras todas lá!

Ganhou assim o respeito dos colegas de cela, estava seguro. Nos 29 dias que passou preso, só se assustou quando viu o pai passar pelo corredor. Os dois apenas se olharam rapidamente.

- Não falo com ele faz uma pá de tempo!

Rebeldia adolescente e disciplina militar sob um mesmo teto criam muitas arestas. O pai de Adriano é sargento da Aeronáutica. Criou o filho na vila militar construída atrás do aeroporto. Sua intervenção pode ter sido determinante na decisão do delegado de plantão de liberar o acusado após limpar dos arquivos todos os vestígios da ocorrência. Afinal, não havia flagrante, nem provas, e a vítima não atendeu à duas convocações para confirmar a acusação.

- Tô limpo. Quando arrumar trampo, não vai aparecer nada naquele papel que eles pedem, o anti..., antec...

- O atestado de antecedentes...

-Isso!

Adriano retomou a rotina. As aulas do primeiro ano colegial pela manhã, bico de engraxate não-autorizado à tarde e à noite. Às vezes, 18 pares por dia. Com preços diferenciados. Cinco reais para brasileiros. Para “gringos”, tabela em inglês:

- Chain chus,mister. Five dólar!

Mas agora ele só aborda os fregueses na calçada externa de Cumbica. Onde também trabalham os chamados carregadores de bagagem clandestinos, suspeitos pelo desaparecimento de um notebook e um punhado de dólares de um estrangeiro.

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