Um cigarro (crônica da violência cotidiana IV)

Nelson é o dono de uma lanchonete na zona sul de São Paulo. Atende do café da manhã ao jantar, esticando como bar, trabalhadores das redondezas.
Aproveitou a onda de prosperidade dos últimos anos com o aumento de renda da freguesia, mas ultimamente também anda preocupado com as dívidas:
- O movimento caiu para todo mundo. Já esteve bom, mas, agora, tá difícil.
As preocupações o fizeram perder o empenho na luta contra o tabaco. Diminuiu o consumo, não se livrou dele ainda.
No fim do expediente, por volta das 23 horas, baixou as portas, meteu as chaves no bolso e iniciou a caminhada com o funcionário de confiança até o carro, a dois quarteirões dali.
Acendeu o único cigarro do dia, retirado de um maço guardado no caixa para evitar a tentação.
Colocá-lo entre os lábios, observar a chama escapar do isqueiro, dar o primeiro trago; os gestos automáticos evocam prazer pelo vácuo mental que criam.
Na segunda tragada os músculos se soltaram. Desacelerou a passada, soltou os ombros e levantou a cabeça para expirar a fumaça.
Retornava devagar para a realidade, voltava a cabeça para o acompanhante buscando alguma amenidade para conversar, tão absorto que não percebeu a aproximação do mendigo.
- Me dá um cigarro!
- Só tenho esse, vou ficar te devendo...
- Negando um cigarro, ô babaca?
- Não tenho mesmo...
 O homem sacou um saco plástico com moedas pendurado na cintura da calça pela presilha, ergueu rapidamente o braço e desferiu o golpe.
O pacote apertado atingiu o supercílio e olho direito de Nelson.
As moedas quicaram na calçada, ruidosas. Sangue grosso e abundante escorreu pela camisa até a barriga.
Assustado com o tamanho da borra vermelha na mão, Nelson ficou paralisado. O funcionário, depois de segundos de titubeio, optou pelo amigo. O mendigo não se preocupou em recolher o dinheiro. Se afastou sem pressa, ameaçando:
- Vou voltar lá no seu bar, vou te quebrar mais ainda ...
Nelson retomou o trabalho na manhãzinha do dia seguinte, com quatro pontos na sobrancelha e o olho roxo quase fechado com o inchaço. 
Responde aos curiosos tratar-se de um acidente de carro. Tem a fala e a cabeça baixas.
Fermenta humilhação e desforra à espera de um novo ataque.
Há também algum temor. Nelson já esteve preso por agressão com arma de fogo.

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