
O sarcasmo gotejado em sílabas é a senha da porta da paciência. Finjo indiferença nestas horas, meio que para instigá-lo, meio para não perder tempo, sempre funciona. Logo na primeira página das notícias, sobre um empresário que iniciaria um novo negócio, ele dispara:
- Ele vai es-tar- taaar o negócio no mês que vem?
- Pois é, mais um passinho descendo ao grunhido, como disse o Saramago uma vez...
O saci gargalhou debochado, rodopiando. Piscou a invisibilidade a fim de abrir um parágrafo, mas parou de repente. Deu um pulinho apertando o nariz no vidro e arregalou os olhos.
- Que isso aí?
- Onde?
- No, alto, aí, do lado direito da tela...
- Anúncio, ué...
- Black Friday...
- Dia especial de descontos no comércio...
Este novo segundo de silêncio surpreendeu-me. De soslaio o vi ajeitando o gorro na cabeça, ressabiado. Olhou-me incrédulo, deu uma cachimbada curta, soprou rápido a fumaça como se fosse perguntar algo. Estancou. Levou devagar o cachimbo outra vez à boca, apoiando lentamente uma das mãos no vidro.
Voltei à leitura, naveguei por outras páginas incomodado, antes dele me interromper ainda com desconfiança.
- Hoje?
-É...
- Mas não estamos na época do natal?
- Falta menos de um mês...
- Então ?!
-Então o quê?
- Num tá todo mundo com o tal do décimo terceiro naquela algazarra de comprá, comprá, comprá?
- Tá...
- E tão dando desconto nessa época? Que gente mais burra !
Expliquei que era mais um modismo americano, do tipo halloween, para tentar aumentar as vendas, etc... e que não era burrice, mas um golpe de esperteza.
- A burrice que eu falei não é deles, é d’ocêis, de “querditá” numa tapeação dessas! Rá-rá-rá-rá!
Ele ficou invisível, como sempre que quer terminar uma
conversa. Acatei, pois a risada fora gritada, um tanto rancorosa, vingativa.
Acho que foi ciúme pela menção ao dia das bruxas. Foi sem querer.
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